segunda-feira, 16 de maio de 2016

Para gostar de ler Mia Couto. Por Edna Domenica Merola.


Para gostar de ler Mia Couto é necessário aventurar-se na diversidade: de palavras e de representações culturais. Foi numa dessas aventuras que acabei imergindo em dois textos deliciosamente densos: O Medo e o Escuro e Nas Águas do Tempo. A primeira é uma fábula que narra um ritual de passagem. A segunda conta um lindo mito sobre a transcendência. Ambas são pura poesia, ainda que em prosa.
Para começar a gostar de ler algo, vale saber quem é o autor. Mia Couto, membro correspondente da Academia Brasileira de Letras, considera-se um "contador de histórias". Nasceu em 1955, na Beira, em Moçambique. O autor assim fala sobre ele: “eu nasci junto ao mar, numa cidade a que eu chamo de “água natal” porque a cidade era inundada nas marés vivas, eu tinha o meu riachinho privado que era a nossa rua que transbordava sazonalmente.” (COUTO. Prefácio de Estórias Abensonhadas).
É um dos principais escritores africanos em atividade. Seu romance Terra Sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007, o prêmio União Latina de Literaturas Românicas. A Companhia das Letras vem publicando toda a sua obra.
Segundo Mia Couto, “repensar o pensamento é transformar o universo em pluriverso. Vivemos em estado de guerra com a alteridade. O pensamento é organizado em fronteiras que é um termo de guerra. Fronteira vem de ‘front’, frente de batalha. Precisamos questionar o mundo, já que estamos sem aldeia. Temos de desobedecer para alcançar o paraíso. Precisamos de novas fábulas para reconciliar com o que vive dentro de nós. Não é da luz do sol que nós nascemos. Carecemos do nascer da Terra.” (COUTO, Entrevista disponível em:
Ainda segundo Mia Couto, “há quem tenha medo que o medo acabe. Não há muros que separam os que têm medo dos que não têm medo”. Em nome da segurança nacional foram colocados no poder os ditadores mais sanguinários de toda a história. A fome será sem dúvida a maior causa de insegurança mundial.” (COUTO. Entrevista disponível em:


O Gato e o Escuro é um livro para crianças?


Questionado sobre se escreve para crianças, Mia Couto respondeu: “Quando escrevo não vejo os destinatários. Estou em diálogo com os meus personagens interiores. Alguns desses personagens poderão ser crianças, pedaços de infância que sobrevivem em mim. Mas não há nenhuma preocupação de alinhar o que faço com as características de certo tipo de público. No dia em que pensasse nisso deixava de escrever.”.
O Gato e o Escuro toca aquilo que é talvez mais profundo num ser que descobre o mundo e os seus perigos: o medo. O temor do escuro é algo muito comum na infância. A sugestão é vencer o medo por via da palavra. Quando convertermos o escuro e a morte numa história criada pela nossa própria palavra, então é mais fácil não ser vencido pelo medo.
No texto de Mia Couto, o Escuro não é uma entidade fantasmagórica: é um personagem que sofre porque todos têm medo dele. A humanização dele é algo que instiga os leitores a repensarem a ordem do mundo.
O escuro é o que vem de fora do circuito eurocêntrico, é a pobreza, a fome, o outro. O medo do escuro é o medo das "ideias escuras que temos sobre o escuro"...
No livro O Medo e o Escuro, Mia Couto inventou os substantivos: Pintalgato, trespassagem, noitidão, antecoisa. E os adjetivos: ataratonto, sobrancelhado. Criou os verbos: namoriscando, arco-iriscando, pirilampiscavam, despersianar, tiquetaqueava.
Essas palavras foram criadas unindo duas já existentes, cito o trecho no qual consta a palavra Pintalgato: Vejam meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história. Pois ele nem sempre foi dessa cor. Conta a mãe dele que antes tinha sido amarelo, às malhas e às pintas.  Tanto que lhe chamavam o Pintalgato.
A palavra pintalgato remete a pintassilgo + gato, ou  ainda, a pintagol+ gato. 
O pintassilgo, além de seu canto característico, imita o canto de outras aves. 
O pintagol é uma ave híbrida mistura de canário com pintassilgo. Portanto, Pintalgato remete à imitação, ao hibridismo e à alteridade. 
Cito o trecho no qual consta a palavra tiquetaqueava: Quando regressava de sua desobediência, olhou as patas adianteiras e se assustou. Estavam pretas, mais que o breu. Escondeu-se num canto, mais enrolado que o pangolim. Não queria ser visto em flagrante escuridão. Mesmo assim, no dia seguinte, ele insistiu na brincadeira. E passou mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade. À medida que avançava, seu coração tiquetaqueava. Temia o castigo.
Tiquetaqueava é uma formação por amálgama: pode ser entendida como uma pequena “estória”. A onomatopeia que refere ao som do relógio é transformada num verbo: na ação de apropriar-se do tempo, de incorporar o medo do momento ou do medo pela transgressão.
Cito o trecho no qual consta a palavra: arco-iriscando: Quando despertou, viu que as suas costas estavam das cores todas da luz. Metade de seu corpo brilhava, arco-iriscando. Afinal?
O substantivo composto arco-íris foi transformado num verbo no gerúndio, passando a indicar a ação contínua de construir a própria luminosidade ou identidade.
Em O Gato e o Escuro, a prosa de Mia Couto é poética, como se pode ler em: "Aconteceu assim: o gatinho gostava passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite. Faz de conta o pôr do sol fosse um muro. Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente.
Nesse trecho a linha do horizonte comparece como fronteira entre o dia e a noite. A palavra muro (presente no texto de Mia Couto) é usada por Baumann para referir à preocupação com a segurança na contemporaneidade e à crença de que erguer muros é suficiente para se defender do outro. Para Mia Couto, a solução contra a violência é a erradicação da fome do planeta. 
Em O Gato e o Escuro, o poente é o limiar, a zona fronteiriça entre o dia (sol, razão) e a noite (lua, intuição). É nessa zona limiar (ou de passagem) que se dá a criação do novo e da emancipação. "Porque o Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá. Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam."
O Gato e o Escuro pode ser visto como um desenho dessa linha onde nasce a utopia.


O segundo livro a comentar: Estórias Abensonhadas emergem de Moçambique após a guerra que durou quase trinta anos. As estórias emanam da reconstrução via literatura e do resgate das tradições culturais pelas vias da ficção. No título, ocorre amálgama: fusão de abençoadas com sonhadas. O vocábulo “fronteira” refere ao passado de guerra, mas também à busca da conexão entre o "eu" e os “outros”. No prefácio, pode-se ler: Estas estórias falam desse território aonde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.





Glossário de Estórias Abensonhadas

CANGANHIÇAVA: aportuguesamento da expressão local canganhiça, que significa enganar, ludibriar.
Citação de O adivinhador das mortes
— Então me faz favor explicar: que dia eu, afinal, morri?
— Ontem à noite. O senhor, em verdade, é um recém-falecido.
Adabo se embrumou. Fora o sonho? Pode a morte suceder em terras enevoadas do sonho? Nunca ouvira. Mentira, devia ser mentira do adivinho. O fulano canganhiçava.

CONCHO: canoa, pequena embarcação.
Citação de Nas águas do tempo
Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.
Arquétipo da Alteridade: conexão entre o "eu" e os “outros”.

MAKA: zanga, conflito.
Citação de O Adivinhador das Mortes
A zanga de Adabo não sabia se havia de rir. Acabou por levedar a maka:
— Está bom. Então se estou morto, como você adianta, não posso pagar consulta. Vou embora assim mesmo.

MAMANAS: termo com que se designam as mulheres casadas no Sul de Moçambique.
Citação de Pranto de Coqueiro
— Esta ventania não vai autorizar nenhum barco.
Me sento ali, milvagaroso para mostrar que não tenho opinião. Desembrulho os bolinhos que comprei faz pouco às mamanas do mercado. Um miúdo se aproxima.
Penso: lá vem mais um pedinchorar. Mas não, a criança se guarda para além da mendigável distância. Já meus dentes se preparam para o sabor quando o miúdo se arregala, subindo o grito na garganta:
— Senhor, não come esse bolo!

MUENE: autoridade tradicional.
Citação de Lenda de Namarói
— As mulheres têm uma parte vermelha: é dela que sai o fogo. Então, o muene que chefiava os homens mandou que fossem buscar o fogo e lho entregassem intacto. E dois atravessaram o rio para cumprir a ordem. Mas eles desconseguiram: as chamas se entornavam, esvaídas. O fogo não tinha competência de atravessar o rio.

MUTI: tradicional aglomerado de casas de um mesmo grupo familiar, nas zonas rurais de Moçambique.
Citação de O Adeus da Sombra
Chegamos pouco depois ao lugar da curandeira. Ficamos sentados na entrada do muti, conforme os pedidos da licença. Em boa casa africana o dia transcorre fora da casa, no pátio. Por ali rondam crianças, ciscam galinhas. Nãozinha demora a chegar. Por fim, dá aparecimento.

NENECAR: no sentido original significa trazer uma criança às costas; utilizado aqui como adormecer, embalar.
Citação de Pranto de Coqueiro
— É para quê esse fruto?
— É para mandar analisar lá no Hospital.
Antes que eu debitasse lógica, ele contrapôs: aquele sangue sabe-se lá em que veias andara brincando? Sabe-se lá se era matéria adoecida ou, antes, adoesida?
E voltou a embrulhar o fruto com carinhos que só a filhos se destinam. E se afastou, embalando em canção de nenecar. Seria esse meninar de Suleimane, quase eu juro, mas me pareceu escutar um lamento vindo do coco, um chorar da terra, em mágoa de ser mulher.

PETROMAX: candeeiro a petróleo.
Citação de O Caximbo (cachimbo) de Felisberto
— Se vou sair daqui tenho que levar todas essas árvores.
O nacional funcionário economizou paciência e lhe disse que, mais semana, eles voltariam para o carregarem, nem que fosse à bruta força. E foram.
No dia sequente, o homem pôs-se a desenterrar as árvores, escavando pelas raízes.
Começou pela árvore sagrada do seu quintal. Trabalhou fundo: lá aonde ia covando já se desabria um escuro total. Para dar seguimentos na fundura passou a levar um petromax, desses que trouxera do Johnne. E tempo após tempo, se demorou nesse serviço.

TCHOVA-XITADUMA: expressão com que, no Sul de Moçambique, se designam as carroças de tração humana. Traduzindo à letra: empurra, que há-de pegar”.
Citação de O calcanhar de Virigílio
Nunca mais ela terá que carregar o peso dele. Esta é a derradeira transportação do seu corpo. Todo dinheiro ela gastara no funeral. O carro era despesa demasiada. Assim, se arrumou o caixão em tchova-xitaduma. As tábuas não uniam bem e a luz, às fatias, deixava entrever, dentro, o deitado corpo. O caixão fora feito de emendas. Hortência juntou mesa, cadeira e caixotes. Montoou aquela madeira para lhe dar aquele escuro destino. O carpinteiro do bairro, Virigílio Prego, não cobrou mão de obra.

TCHOVAR: empurrar.
Citação de O perfume
 Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes?
— E os meninos?
— Já organizei com o vizinho, não se preocupa.
E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou: desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?

XIPEFO: lamparina a petróleo.
Citação de As flores de Novidade
Muitas noites além, a família repadeceu os acontecimentos. Jonasse não se encontrava. O mineiro esburacava a terra, em turno noturno. Em casa, a mãe ainda deixou seus olhos sobrarem na copa da luz do xipefo. Costurava tecido nenhum, roupinhas para um filho que, conforme o sabido, nunca haveria de vir.

Em O Gato e o Escuro e Estórias Abensonhadas, a poética de Mia Couto  traz o pluriverso (ou universo plural) à baila. Assim os elementos Água, Terra, Fogo e Ar são presentes a exemplo de Nas Águas do Tempo (água e terra: pântano); O Gato e o Escuro (terra e ar); Lenda de Namarói (fogo).

A construção de neologismos (brincriações) é o próprio estado lúdico de criação pela linguagem.  A poesia é presente para narrar a morte em Nas águas do Tempo assim como é presente para narrar o ritual de passagem ou ingresso no mundo 'adulto'. Trata-se de um desaguar que é choro de nascimento, mas também desaguar do rio da vida para o mar da infinitude. Trata-se de uma construção circular "rio acima" e "rio abaixo" que revela o ciclo da vida.


Mind Mapping por Edna Domenica Merola

REFERÊNCIAS


BACHELARD, Gaston. A  Água.  São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BALMANN, Zygmunt. Sobre os laços humanos, redes sociais, liberdade e segurança. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LcHTeDNIarU&nohtml5=False

CARREIRO, José Mª A. Lusofonia - plataforma de apoio ao estudo a língua portuguesa no mundo. 2.ª ed: http://lusofonia.x10.mx/mia.htm, 2016.

COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas. Le Livros.
____________ O Medo e o Escuro. São Paulo: Companhia da Letrinhas, 2008.

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