sábado, 7 de junho de 2014

Ritual de Leitura: De mãos dadas com um Dragão. Edna Domenica Merola.


'Orelha' e contra-capa do livro No Ano do Dragão. Florianópolis: Postimix. 2012.
Talvez você espere que diga coisas sobre a minha vida. Mas eu não vou contá-las como quer. Sei que gosta de pessoas que contam suas superações: relatos lineares sobre perenes batalhas que se tornaram guerras vitoriosas pelo poder do grupo de ouvintes.
A vida me deu menos colo do que sonhei. Alguns amigos queridos me foram levados pela vida... Só ela sabe e tem seus motivos de fazê-lo. Outros me foram tirados pela morte... E dela ninguém quer saber (e por vários e legítimos motivos).
– Falemos de nascimento!
Vim para esse mundo sob um signo do horóscopo ocidental do elemento ar, sob um signo do horóscopo chinês relativo à água. Mas a vida me fez aprender com as tarefas de deitar raízes nas terras trabalhadas e de acender o fogo dos rituais do mister de ensinar. À revelia dos territórios de aprendizes estranharem minha natureza magistral afeita à água e ao ar.
Sei que relatos lineares acalmam a plateia... Histórias assim contadas são músicas de acalanto para o leitor enfarado que precisa vencer a insônia. São, no entanto, momentos de sínteses existenciais que me fazem pegar um lápis e registrar as descobertas...
(– Sobre a vida passada? – perguntará o leitor.)
Refiro-me às descobertas sobre a vida temporal em especial faceta: sem que se tenha por meta colocá-la linearmente como se fôssemos seres que aceitássemos viver cada processo como uma simples sucessão de: um começo, um meio e o fim.
O processo de criação é alquimia. Seu resultado almejado é transformar todo metal em ouro. A transformação na alquimia é interior e uma alteração ocorre, concomitantemente àquela.
Alteração significa ação do outro (alter) dentro de nós. A ação social é matéria prima da constituição do sujeito: é modificadora e gera crescimento.
Enquanto tecia essas considerações fazia o ritual necessário para acessar seu correio eletrônico. Interrompeu as reflexões para ler um PPS – apresentação conjunta de texto, imagem e som exibidas em slides – que uma amiga enviara.
Mostrava peculiaridades de um ninho construído junto a uma janela de um prédio e fotografado por um morador que achou aquilo surpreendente e fez circular na Internet destinando-o principalmente às crianças. Adultos se apropriaram do contido nas imagens, texto e som e associaram-no à fé religiosa e comprovação da existência de Deus.
Durante a construção do ninho, a fêmea conferia a obra de arte do macho. O ninho foi construído em forma de círculo com minúsculos pedacinhos carregados no bico do João-de-barro, por aproximadamente dois meses, em jornadas de oito a dez horas de trabalho. O pássaro usou diferentes materiais nas diversas fases da construção. Iniciou com materiais mais duros e terminou com os mais flexíveis. O ninho ficou bem fechado e protegido, assemelhando-se a uma caverna. Minha amiga acrescentava a tudo isso seu comentário:
– Bela obra deste pássaro e que cavalheirismo ele tem... Os homens têm muito que aprender com ele. Atualmente, enquanto as mulheres constroem o lar, o homem além de não elogiar ainda tece críticas ferozes... Geralmente é assim: quem nada faz em conjunto, só critica o que foi feito em prol do outro. Acredito que o correto é substituir crítica por sugestões que levem ao aprendizado.
Habituada a se comunicar sob a égide de efemérides, respondeu-lhe:
– Grata pelo envio, minha amiga. Em época de Páscoa, na qual se ouve falar tanto em renovação e êxodo (saída dos hebreus em busca do Egito...), trazer o tema da construção e dos feitos em processos demorados (que contam sempre com as mãos de arquitetos transcendentais) é muito bem lembrado e inspirado. Então o João de Barro passa a ser um pássaro cavalheiro nesse seu dizer poético.
A amiga dos longínquos tempos de escola respondeu-lhe:
– Oi, amiga, tudo bom? Você consegue dar brilho a algo tão simples e pueril. É uma fada a pulverizar ideias e fazer as pessoas pensarem. Saudade, beijos.
Havia intuído que a amiga estava um pouco ressentida. Após receber sua resposta, confirmou que sim, e completou sua resposta, elogiando-a:
– Um Universo de conforto se constrói com versos colocados a cada dia: como você tem feito em sua vida. Parabéns, minha amiga, o mundo precisa de Joões (como o pássaro cavalheiro) e de Joanas como você que tanto tem abrigado pessoas. Grata por me abrigar em seu rol de amigas... desde 1983.
Não perguntou a quem a amiga se referia, quando dizia que há pessoas que gostam de criticar. Sabia que ela incluía em seu vasto rol de atividades a dedicação a uma associação beneficente e que provavelmente organizou algo para lembrar a Páscoa. Então escreveu à amiga:
– Meu recado para a turma que pratica a crítica aos outros como um esporte radical é que aguardem o sábado de Aleluia que é o dia apropriado de malhar o Judas!
Em respeito às circunstâncias, omiti, em meu comentário, que estudiosos de comportamento animal afirmam que o joão-de-barro não admite que sua parceira o traia. Quando isso acontece, o parceiro a aprisiona definitivamente no ninho, construindo a vedação total da casinha, com ela dentro. O que considero grande falta de cavalheirismo!
A solidariedade não se compromete com a cobrança e o aprisionamento. A solidariedade espontânea é a verdadeira prática beneficente, pois constitui sujeitos: humaniza.
A frieza, o fechamento, a ilusão, a imaginação inoperante, a inconsciência e a inconstância se dissipam na alegria do acolhimento.
É por esse movimento de tropismo que se dá a busca da luz, da novidade, da clareza, da conscientização...
O processo alquímico de encontro transforma o banal em preciosidade, transforma a busca interior em mudança social, transforma a busca em iluminação.
Esse processo que parece tão complexo faz parte de ações corriqueiras como as relativas à leitura.
O movimento de tropismo em direção ao encontro do leitor é busca processual cujo resultado é um livro. Mas um livro sem um leitor é um buscador sem meta: um dragão opaco, franzino, medroso e apagado.
– Caro leitor (cara leitora), acenda as luzes da ribalta. Pegue o dragão pela mão, leve-o ao proscênio. Ateie o fogo... Inicie seu ritual de leitura... Afinal, só você pode fazer de um objeto como um livro algo fantástico como andar, confortavelmente, de mãos dadas com um dragão!

MEROLA, Edna Domenica. De Mãos Dadas com um Dragão. In: No ano do Dragão. Florianópolis: Postimix. 2012.

2 comentários:

  1. O texto levou-me a ponderar sobre a força do dragão. Sei que tenho um dentro de mim que necessita ser compreendido e libertado. A grande transformação será como liberá-lo ao ponto de aprender a andar de mãos dadas: eu e o dragão. Será que conseguirei?
    Escrita inteligente, ao estilo Edna.

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  2. Nosso potencial criativo e nosso super ego podem armar disputas dentro de nossos próprios saberes. Há momentos, no entanto, que ambos se unem como crianças de mãos dadas... Ou como uma mulher idosa de mãos dadas com sua força de vontade dragonina. Permito-me crer nesses momentos plenos.

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