segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Crônica e senso comum. Por Edna Domenica Merola.


Quando estudei crônica no cursinho pré-vestibular, em 1970, lembro-me de que as referências eram sobre um gênero praticado por jornalistas e, por isso, não literário (em seu sentido canônico). No entanto, à época, leitores paulistas tinham o prazer de ler crônicas de Carlos Drummond e de Lourenço Diaféria, em coluna diária (parece pleonasmo, mas não é, pois havia um suplemento literário semanal escrito por críticos de arte). Anteriormente, leitores cariocas já haviam sido contemplados com páginas escritas por Clarice Lispector e Manuel Bandeira!
Em 2012, a situação é outra, pois a arte contemporânea é despida de preconceitos ou até de conceitos... Antes que o leitor se arme contra o que vou dizer, antecipo que se trata de compartilhar algo vivido por alguém que viu o saber institucionalizado sair da sala de aula e percorrer redes sociais na Internet... E de alguém que viu o senso comum desafiar teorias como se fossem todas elas feitas por tolos sedentários em busca de ocupação...
Percebo que nesse ponto algum leitor poderá me chamar por adjetivos iniciados pelo prefixo in (+satisfeita, +flexível,+conformada...). Deixe-me só acrescentar que esse desafio do senso comum foi maravilhoso, na década de noventa, auxiliando-nos a criar novas didáticas preocupadas em religar saberes, criando projetos multidisciplinares, interdisciplinares, transdisciplinares! Mas voltemos ao gênero crônica e a 2012. As pessoas ‘plugadas’ em criar por meio da palavra (e por que não incluir todos que redigem as conversas nas redes sociais?) se valem da veia de cronista, pois falam do momento presente em generalizações tribais que desvelam a privacidade, registrando costumes, comportamentos e demais concepções sobre o fazer (que é a forma contemporânea de mostrar a imagem da existência!).
Em 2012, navegando, na condição de internauta, por sites produzidos por adultos, descobri um texto formatado como didático no qual os exemplos dados sobre focos narrativos foram invertidos. Comecei a buscar elementos para entender esse erro, pois no mais o texto aparentava ser bem intencionado. Fiquei apreensiva...  O que teria sido feito com as pessoas honestamente curiosas e com os bons pesquisadores? Teriam perdido a credibilidade, deixando espaço para enganadores que dominam a linguagem das novas tribos? Mas segui firme com a meta de entender o que causou essa depressão no terreno de estudantes e estudiosos e no território dos ‘escritores’... Em primeiro lugar, o que vem a ser foco narrativo?  É o ponto de vista ou a perspectiva através da qual se conta uma história. É a posição escolhida pela instância narrante ou voz que conta algo.
Num diálogo com alunos, enquanto citava a respeito de narração em 1ª e 3ª pessoas, um deles falou: ‒ Como seria uma narração em 2ª pessoa? Achei a pergunta engraçada, pois era inédita! O fato é que pessoas criam dúvidas e isso estimula quem gosta de ensinar. A resposta então foi a que segue: ‒ A primeira pessoa é quem está falando, a terceira pessoa é de quem se está falando, mas a segunda pessoa é com quem se fala. Então não pode haver narração em 2ª pessoa, porque na narração a 2ª pessoa é quem recebe a história, o ouvinte ou o leitor, a pessoa para quem se narra os fatos. Se ela passar a narrar, deixa de ser a 2ª pessoa. Percebi que meu aluno confundira as pessoas gramaticais que são três (primeira: eu e nós; segunda: tu e vós; terceira: ele, ela, eles, elas) com os tipos de narradores que sãos vários, mas decorrentes da escolha entre narrar como observador ou narrar como personagem.
A partir de então, prefiro sempre diferenciar os dois tipos como: narrador observador e narrador personagem. Narrador-Observador: é aquele que conta a história através de uma perspectiva de fora da história, ou seja, em momento algum, ele participa da história, mas em todo o tempo, ele está observando. Narrador-Personagem: conta a história de uma perspectiva de dentro da história, participa do enredo, é um dos personagens, utiliza ‒ eu ou nós ‒ para narrar.
Quando exponho um texto narrativo de minha autoria, usando o pronome eu, ocorre dos ouvintes perguntarem se é verídica. E a situação se agrava, quando o gênero é crônica. Sou poetisa, além de cronista. Meu livro ‒ No Ano do Dragão ‒ é um livro de crônicas que tem personagens poetisas ou não, místicas ou não... O foco narrativo de alguns textos é em primeira pessoa, outros não. Sua temática é contemporânea. Os narradores das crônicas referidas são oniscientes. Concordo que tudo isso faz suspeitar se há, não só na obra em pauta, mas na crônica em geral, certa veia autobiográfica. No entanto, o viés recorrente no gênero é a leitura de mundo que os autores expressam na construção da ficção sob a própria percepção do momento social vivido no cotidiano (que chamamos de realidade, costumeiramente). Mas as pessoas, quando fazem perguntas não querem entabular diálogos longos. Querem respostas rápidas do tipo sim ou não.
Noutro dia, duas alunas queriam se inscrever num concurso de crônicas e me pediram uma receita rápida sobre a escrita desse gênero. Dei a que segue: descreva, narre, disserte, aflore sua veia poética em prosa... (Ah! Não precisa ser nessa ordem!).
Mas o que é descrever, quando se trata de crônica? Descrever é buscar lugares descritivos. Na descrição há elementos para a realização de fatos, mas não ocorre a interação entre os elementos (por exemplo, o diálogo entre os personagens).
O que é narrar? É escolher um foco para uma escrita constituída basicamente de verbos que expressam ação e encadeiam causas e consequências, revelando a interação de elementos para a realização de fatos.
O que é dissertar? É buscar pertencimento a comunidades argumentativas sendo necessária a predominância da disposição lógica de indícios, suposições, deduções, e opiniões que busquem respaldar um conjunto de sequências argumentativas. O que é veia poética? É a responsável maior pelo viés autobiográfico da crônica, pois expressa a visão de mundo da (do) cronista.
Se essa “receita” não foi suficiente há sempre a possibilidade de buscar outras... Afinal há quem diga que vale a pena, já que ser cronista foi uma profissão 'real’... Até onde eu sei o cargo de cronista Mor do Reino foi uma oportunidade profissional e tanto na época do Fernão Lopes (1434), assim como na de Gomes Eanes de Azurara (1454)... Pero Vaz de Caminha também teve seus momentos de fama como cronista por ocasião da invasão portuguesa às terras tupiniquins, em 1500. (Como isso foi chamado de descoberta do Brasil também por historiadores, vê-se que o uso de eufemismos e de outras figuras de linguagem não é prerrogativa exclusiva de poetas.). 
Mas para o cronista em idioma português a “mamata” (ou o período áureo da profissão de cronista da realeza) acabou em 1580 com a integração do reino de Portugal à coroa de Espanha. Esperando, com paciência histórica, que as coisas melhorem, vou em frente nessa tourada! E só posso terminar com:  ‒ Olé!

2 comentários:

  1. Uma crônica que chama a atenção, da narração e do diálogo nas crônicas, muito boa
    Mário

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    1. Olá, escritor Mário Osny, fico feliz com seu comentário assertivo.Edna.

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