segunda-feira, 21 de maio de 2012

A Volta do Contador de Histórias, por Edna Domenica Merola

Se ouvirem falar que ainda pratico algo como um esporte radical prestem bem atenção, pois já passei dos cinqüenta. Se ouvirem dizer que minha primeira experiência radical foi em ‘Floripa’, nos anos sessenta, prestem mais atenção ainda. A experiência passada a que me refiro e que hoje batizo de radical foi meu primeiro contato com um legítimo contador de histórias. E que contador! Papai e mamãe possuíam uma empresa paulistana do ramo de metais, que à época eram utilizados em aparelhos eletrônicos. Vieram pra Florianópolis conhecer a família de seu mais novo freguês na compra de peças para montagem de transformadores de voltagem. Era época inaugural de acesso à televisão, cá na Ilha da Magia. Fernando e Nicinha, casal bem mais jovem do que meus pais, procuravam se estabelecer na vida. Já tinham seus dois pimpolhos, perto dos quais minha irmã e eu já éramos consideradas crianças crescidas.
Fernando dirigia seu jipe e cabíamos todos lá dentro, sabe Deus como, pois meu corpo hoje volumoso recorre a fotos pra acreditar nessa história que conto agora. Fernando nos mostrava recantos e praias, enquanto narrava Florianópolis tal qual encantador de serpentes.
E havia também os passeios a pé dos quais, algumas vezes, as senhoras e as crianças pequenas não participavam. Um desses passeios foi pura adrenalina, daquele tipo que não sai na foto. Fomos caminhar sobre a Ponte Hercílio Luz.
Andávamos sobre as tábuas rasgadas pelo uso. Fernando e papai à frente, nós filhas, atrás. Ouvimos papai indagar sobre as condições da ponte.
Sobre a resposta do nosso anfitrião: minha memória filtrou fortemente a maneira como foi dada.  Fernando respondeu no mesmo tom com que descrevera as dunas, durante o caminho de ida, quando nos levou visitá-las. Ocasião em que ensinara às crianças como proceder ao chegar lá. Uma narrativa imperiosa de chegar, deitar e rolar duna abaixo.
Sobre o conteúdo da resposta: vale aquilatar se houve intenção de valorizar seu distanciamento com a forma de expressão vocal utilizada. Sobre como se dá a intersecção de conteúdo e forma na narrativa de Fernando: há que traçar primeiro uma linha do que foi dito. A seguir, há que demarcar o que foi visto. Para depois prover o entendimento de como as diferentes tonalidades tingem e atingem a ouvinte.
Fernando contou com voz sorridente que na semana anterior o último veículo a passar havia sido um caminhão que caíra no mar.
Papai costumava andar depressa, mas puxando bem pela memória, às vezes acho que apertou o passo, e que nós também o fizemos. Noutras vezes, penso que não: que continuou a andar em seu ritmo habitual. Quando isso acontece, coloco-me na cena, segurando a mão de minha irmã mais velha, sempre rápida e confiante.
Usava um vestido cor de abóbora e uma fita de ‘banlon’ da mesma cor para enfeitar os cabelos ao vento. Minha irmã nada dizia. Eu nada disse.
Após mais de meio século, aguardo o buraco cair em si.
Olhava cada buraco da ponte e calculava meu tamanho de menina de oito anos que sentava na primeira carteira de uma das compridas fileiras da sala de aula, lá da escola paulistana. Lembro-me perfeitamente de um rombo em especial. Era menor do que a boca da Bernunça. Mas com certeza dava sim para meu corpo infantil escorregar por ele de forma a poder mergulhar feito o caminhão da história.

Lembro também de que olhei para o contador da história, responsável primeiro daquele passeio. Caminhava com seu passo em gingo cadenciado. Pareceu-me ágil, mas sossegado. E a conversa com papai continuava rolando solta. Talvez sobre obstáculos que os cidadãos pioneiros teriam de transpor a duras penas, mas que deveriam ser narrados com a voz macia de ilhéus.
Então minha memória - após retomar a cena na qual passo ilesa perto do maior buraco que a ponte Hercílio Luz teve no início da década de sessenta - canta feliz, com voz de criança:
- Olé, olé, olé, olé, olá.
- Arreda do caminho...
- Que a Bernunça quer ‘passá’!
E uma inspiração lusitana me remete ao mito da espera sebastianista. E então, encontro outros sonhadores que acreditam que seu rei vai voltar. Desta vez, ao invés da armadura terá por traje a fantasia de contador de histórias. Qual será seu nome? Será velho? Será novo?
Alguns dizem que ele já foi visto. Mas os relatos são contraditórios.
Uns dizem que ele é um moço de nome Fernando. Outros juram que é um homem mais maduro: talvez um empresário paulistano. Outros dizem que viram os dois andando juntos sobre a velha ponte.
Há aqueles que dizem que quem voltou foi o motorista do caminhão que caiu. Dizem até que ele voltou para procurar uma menina que quer saber sua verdade sobre a história.
Dizem que o motorista voltou para contar a ela que conseguiu sair da boleia, que recebeu ajuda dos amigos pescadores. Que foi tão difícil a vida depois da perda de seu caminhão. Mas que se manteve sempre devoto de Nossa Senhora dos Navegantes que o ajudou a salvar-se pra poder criar os cinco filhos.
Dizem que o caminhoneiro pede a cada um que passa que chame urgente a tal menina que corre o risco de perder sua alma de criança se ficar sem ouvir essa sua parte... Inda mais que seu pai levou-a embora desses desafios de buracos e pontes... Mas também tão longe das dunas de areia e da Bernunça...
Frente a tantas discrepâncias sobre os fatos naturais, mais se fortalecem as crenças de ordem supra e diversa...
Todos os narradores concordam, no entanto, que ouviram vozes sobre a ponte e que elas exigem que os resgates sejam finalmente executados.
E, em fantasia, creio que é necessário consertar as pontes simbólicas para que as diferentes gerações possam voltar a compactuar.
E, em verdade, creio que é necessário consertar as pontes, para o Boi de Mamão poder dançar e cantar...








Nenhum comentário:

Postar um comentário